Sobre emprestar a vida para a arte
- Salivrando - Nay Coelho
- 5 de jul. de 2023
- 5 min de leitura
Atualizado: 8 de dez. de 2023
Dia desses fiquei mexida quando vi um post que falava: "ninguém lê duas vezes o mesmo livro". Achei isso tão forte que quando decidi reler Daisy Jones & The Six, levei essa ideia comigo durante o processo (e pra vida também).
Com a estreia da série chegando, senti que era hora de reler a história, porque além de ser um livro que eu favoritei, queria recordar alguns fatos que eu tinha esquecido e mais importante que isso, eu também não era mais a mesma pessoa que leu o livro na primeira vez.
Gosto de fazer umas releituras de vez em quando, e acho um máximo quando me apego mais em algo que deixei passar batido da primeira vez. Assim eu consigo perceber o quanto meu olhar sobre tal coisa mudou. É quase um estudo sobre si mesma que eu recomendo a vocês fazerem também.
Então comecei. Fui me emocionando mil vezes mais nessa segunda leitura. Em vários momentos. Quando cheguei na página 98, fiquei impactada ao me deparar com uma fala da personagem Camila, que eu não dei tanta importância quando conheci o livro, mas que agora fez muito sentido para mim. Falava o seguinte:
"Quando você empresta sua vida para a sua música, não consegue ter um distanciamento crítico a respeito."


Ela disse isso porque o marido dela, o Billy, estava p.u.t.o pelo fato da Daisy Jones ter mudado a perspectiva da composição dele, a música "Honeycomb". Ele levou tanto para o pessoal, que foi como se ela não estivesse questionando a canção, mas sim o próprio Billy, já que a letra era sobre algo da vida dele e da Camila.
E a Daisy, grandona sem medo, bateu o pé e disse que não ia cantar músicas sobre a mulher dele. Outra personagem, a Karen, foi ainda mais cirúrgica dizendo que "a Daisy puxou o tapete do Billy com isso". E realmente ela puxou.
Então aconteceu algo que nem eu mesma acreditei: comecei a concordar o Billy (Tenso. Ele é um personagem problemático). Isso porque eu penso que é quase impossível dizer que não exista absolutamente nada do criador na criação. Seja em músicas, livros, filmes, ou qualquer outra forma de arte.
Criar algo e mostrar pra alguém é se expor. Um nude da alma. Algo muito íntimo que dá medo, mas ao mesmo tempo é libertador. O Billy expôs algo pessoal, com todo receio e cuidado e foi pisoteado. Isso quebra qualquer um.
Toda essa questão do Billy não saber separar a música da vida real, me fez pensar em quanto isso acontece comigo às vezes, mas em relação aos livros e a escrita.
Eu até entendo o Billy e sua angústia, afinal quando leio ou escrevo, me sinto em um lugar seguro que dá a sensação de que ali ninguém é capaz de questionar. Depois, quando sinto vontade de mostrar um texto ou falar de um livro para alguém, sinto que se aquilo for questionado, vão estar questionando a mim diretamente. Já pensei muito sobre isso, até mesmo de um jeito tóxico e egoísta, assumo.
Mas aí vem uma lição muito importante e ao mesmo tempo perigosa, porque a vida real nos questiona o tempo todo e muita vezes encontramos uma Daisy pelo caminho, que puxa nosso tapete pra essa realidade sem a gente nem se dar conta disso e nem estar preparada.

Eu tenho sentido isso demais porque estou no processo de reescrita do meu primeiro livro. E tem horas que minha vontade é ficar imersa naquele mundo (Igual eu estava também com Daisy Jones nessa chegada da série, beirando a obsessão).
Quando eu crio algo, seja um texto, seja uma história, uma arte de post, a linha que separa a criação da criatura é muito tênue. Não tem como eu dizer que nada do que eu escrevo não tenha algo meu, mesmo que não seja sobre mim, porque isso é uma mentira. O perigo é quando eu tento viver aquilo como se fosse a minha realidade. Eu sei bem que isso não é algo saudável.
Penso que a realidade é tão cruel as vezes, que criar um universo particular na mente, ou ficar imersa no mundo de um livro, um texto, uma série, uma música ou até de uma banda, costuma me dar um alívio gigante em certos momentos.
Se refugiar na arte, seja na sua própria ou na de outra pessoa não devia ser visto com maus olhos.
Vi também dia desses um outro post sobre isso uma vez. Ele dizia que não era bom fugir da realidade e dos problemas, lendo excessivamente, ou fazendo qualquer coisa para "fugir" do que aflige.
Concordei em discordar, já que eu apenas tento olhar como um lugar seguro, e que mal há nisso? Deixo minha imaginação vagar por ali e fazer minha morada as vezes. Cada um tem sua válvula de escape.
Então eu ativo um pouco o infeliz arquétipo de Billy Dunne e começo a levar para o pessoal. Mesmo sabendo racionalmente que não é bem assim (Na mente de pessoa ansiosa essa ideia toma uma proporção enorme).
Por exemplo, dia desses me peguei chorando copiosamente quando reescrevi uma cena de um personagem do meu livro. No contexto ele viu uma foto antiga e foi inundado de memórias. Eu senti como se fosse comigo, se eu fosse aquele personagem e vivendo o que ele perdeu.
Ele existe? Não.
Fui eu que perdi? Também não.
Mas esse é o nível de entrega que eu chego quando escrevo, tendo muita dificuldade absurda de separar a vida da arte. Então o medo de mostrar algo tão íntimo chega a ser avassalador. E a onda racional sobre isso tudo chega bem depois.
Sei que tenho que tentar manter uma distância segura da minha criação, assim como o Billy tentou manter uma distância de Honeycomb, mas a real é que tudo que criamos tem algo nosso, e isso é algo MUITO difícil de desassociar.
Camila disse sobre o Billy "emprestar" a vida para a música. Acho que emprestar é pouco demais. "Doar" é algo mais apropriado.
A arte, seja ela qual for, tem esse poder sobre nós. É algo que transborda nosso peito. Quando eu olho de fora, vejo que, se aquele oceano todo saiu de dentro de mim, que mal tem eu ficar por ali velejando por um tempo?
Sei que podem vir tempestades, ondas gigantes, ou até mesmo algumas Daisys pelos caminho que façam meu barco virar, mas a sabedoria que construímos com o tempo (e com muito autoconhecimento) faz a gente aprender a hora de voltar pra costa. As vezes até o próprio vento leva o barco sem querer e me sinto obrigada a voltar a pisar em terra firme.
Ainda sigo no processo de aprender a separar a vida da arte. Mas já aceitei e entendi que assim como o Billy, eu empresto minha vida a ela todos os dias.
Isso me permite concluir que tudo tem um preço. Emprestar a vida para a arte requer coragem. Fazer releituras também.
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