Ninguém lê o mesmo livro duas vezes
- Salivrando - Nay Coelho
- 9 de mai. de 2024
- 8 min de leitura
Atualizado: 21 de jul. de 2024
O filósofo Heráclito de Éfeso, afirmou que ninguém entra duas vezes no mesmo rio. Isso porque não é a mesma água e possivelmente nem é a mesma pessoa, já que nós, seres humanos, estamos em constante mudança, o tempo todo (por mais que algumas coisas permaneçam intactas dentro de nós).
Achei essa comparação pertinente ao dizer também que ninguém lê o mesmo livro duas vezes. Não quero generalizar, mas acho que isso é mesmo real, galera.
Reler "O encontro marcado" do Fernando Sabino, 15 anos depois de ter lido pela primeira vez, fez essa ideia se enraizar dentro de mim com uma força absurda.
Já tinha um tempo que eu estava querendo reler essa história. Só não sabia quando iria rolar, afinal a minha lista de leituras segue infinita. Então ganhei a edição nova comemorativa do centenário do Fernando Sabino e senti como se fosse um sinal. CHEGOU A HORA.
Com o meu livro novo em mãos, mesmo antes de abri-lo eu já sentia que ficaria mexida. Na primeira vez já foi um choque, porque até então eu só lia livros na vibe Harry Potter e Crepúsculo. Então foi a primeira história "adulta" que li na vida, e seria interessante ver o que mudou nos meus pontos de vista de lá para cá.
Recordo que na primeira leitura me apeguei muito na ideia de poder reencontrar amigos meus de escola daqui há uns anos e contar tudo o que aconteceu em nossas vidas, naquele tom de nostalgia boa.
Isso acontece no livro: Eduardo, Mauro e Eugênio, depois de se formarem na escola, combinam de se reencontrarem na porta do colégio, dali a 20 anos.
Eu era obcecada por essa premissa. Também pelas frases inteligentes do livro como: "Fazer da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sono uma ponte e da procura, um encontro". Escrevi isso em vários lugares e agendas de colegas que eu assinava e deixava uns recadinhos (coisas de millenials).
Claro que fora das páginas não aconteceu nada parecido com essa minha expectativa de adolescente. Tinha mania de achar que muitas das coisas que eu lia iam acontecer comigo um dia, principalmente coisas legais assim como essa do livro.
Só que o tempo passou e nessa releitura o que ficou marcado não foi a nostalgia de um possível reencontro de turma do terceirão. A onda bateu quando os três amigos combinaram de se reencontrar, mas um deles pergunta, pensando sobre o futuro: "O que será de nós?"
"O que será de nós?"
"O que será de nós?"
"O que será de nós?"
"O QUE SERÁ DE NÓS?????"

Eu não pensava na força dessa pergunta quando tinha 15 anos. Nem imaginei que sentiria a mesma agonia de um deles quando a fez aos amigos, ou a do protagonista Eduardo ao conquistar as coisas na vida, e se questionar com medo toda vez: "Tá, mas e agora? O que vem depois?"
Logo no começo dessa nova edição do "O encontro marcado" há um prefácio interessante feito pelo escritor e jornalista Michel Laub. Foi quando que ele disse a seguinte frase que tudo começou a fazer um pouco mais de sentido:
O maior valor que extraímos do trabalho artístico alheio vem do que enxergamos de nós mesmos nele.
Ele também estava fazendo uma releitura desse livro e me identifiquei logo de cara com suas palavras. Isso porque a cada página lida comecei a achar umas coisas em mim, nessa fase atual da minha vida, muito parecidas com as do Eduardo: Pensamentos acelerados, angústias, receios, alegrias. O pacote Premium da vida adulta. Eu me enxerguei nisso, por isso o valor dessa releitura foi absurdamente maior que da primeira vez. Foi um pouco surreal.
Ainda tinha o fato do Eduardo querer ser escritor. Um sonho que temos em comum. Ele coloca em palavras fortes muitas dos sentimentos que todo escritor já deve ter tido ao longo da vida. (ESCRITORES (AS), LEIAM ESSE LIVRO PELO MENOS UMA VEZ NA VIDA, EU JURO, VOCÊS NÃO VÃO SE ARREPENDER)
Essa agonia de viver sem saber o que vai acontecer, se os amigos que fizemos no caminho serão os mesmos, se as conexões que pensamos ser eternas vão acabar, e principalmente aceitar que tudo passa, (mas o gosto daquilo ainda fica na boca, muitas vezes amargo) parece fazer parte essencial do "crescer". E isso aparece bastante no livro. Fui relembrando algumas coisas, pensando em outras, entrando em crises existenciais profundas e até pertinentes.
O Eduardo tinha uma dificuldade imensa de falar como se sentia para as pessoas, queria ser o dono de seu próprio destino. Controlar, eu diria. Há momentos na história, ouso dizer, que ele parecia estar com traços de uma pessoa que sofre de ansiedade, (mesmo que nos anos 40/50 época em que se passa a história, eu duvido que isso sequer fosse cogitado a ser um tipo de problema levado a sério). Mas acontece que quem tem (ou já teve) sabe reconhecer os sinais. E o Eduardo achava absurdo compartilhar aquilo com alguém. Ninguém entenderia.
Claro que dá primeira vez que eu li, isso não me pegou. Eu não sabia nem o que poderia ser ansiedade.
Os pais do Eduardo eram de uma geração bem diferente. O jeito deles falarem que o amavam e queriam apenas o bem dele, se resumia a ações. Compartilhei disso porque na minha vida também foi assim.
Isso me fez desbloquear uma memória doce e amarga que eu nem lembrava mais: uma vez, na pandemia, eu estava tendo uma crise de ansiedade das piores. Achei mesmo que ia morrer. Coração disparado, mãos tremendo, cabeça rodando. E o pior era sentir que eu não podia falar com meus pais, porque na minha cabeça, eles não entenderiam. Já tinha tempos que eu fazia terapia escondido, com medo do que eles iriam achar, por serem muitos religiosos e tal. Mas nesse dia não teve jeito. Meu medo foi maior que meus traumas e tive que falar que não estava me sentindo bem. Se não me falha a memória, minha mãe fez um mingau de fubá (o famoso "cura tudo" dela) e meu pai ficou só calado me olhando tentando entender.
Sei que horas depois fui me acalmando, fazendo uns exercícios de respiração que meu psicólogo na época me ensinou, e as coisas foram voltando ao "normal".
Então a noite antes de dormir, fui pegar uma água na cozinha e meu pai estava lá. Ele ficou me olhando desconfiado parecendo que queria falar alguma coisa. Ele não é muito de falar as coisas. A geração dele era de outra vibe. Só que nesse dia, me surpreendendo ele disse em um tom baixo e cuidadoso:
"Ô Nayara, antes de dormir, vê se reza pro seu anjo de guarda".
Eu só concordei, agradeci e subi para o meu quarto. Engasgada. Não fiquei com raiva do meu pai, muito pelo contrário. Falar de algo sensível aqui na minha casa sempre foi um tabu enorme. Meus pais, assim como os pais do Eduardo, são de mostrar amor nas suas ações, mais do que nas palavras e por mim tudo bem também.
Por já aceitar isso sei que dizer algo para mim daquela forma tão cuidadosa e carinhosa, deve ter sido difícil para ele também, porque com a criação que ele teve, imaginei que ele não estava entendendo o que estava rolando comigo naquele dia. Podia muito bem falar que era tudo frescura. Foi o melhor que ele fez dentro das crenças dele, tentando me ajudar e mostrar que viu que eu não estava bem. Entendi como uma forma de se preocupar, assim como a minha mãe fazendo um mingau pra melhorar uma crise de ansiedade. Mesmo não sendo muito religiosa eu talvez devo ter rezado para o meu anjo de guarda naquela noite antes de dormir.
E com essa releitura, eu lembrei desse episódio que foi tão importante para mim, por ter ajudado a quebrar uma das mil barreiras que só existiam na minha mente ansiosa. Mente que adora me deixar esquecer coisas importantes.
Reler me desbloqueou tanto essa quanto outras memórias que estavam adormecidas, e não deviam. Esse livro veio para acordá-las e me acordar junto.
Nesse ponto eu e o Eduardo fomos para caminhos diferentes. Ele na história optou por não falar, sufocou mais ainda seus sentimentos e perdeu diversas coisas pelo caminho. E eu super entendo esse pensamento de não falar porque "ninguém vai entender". É um escudo de proteção. No meu caso, o medo de que fosse ser repreendida em minha dor ou escolhas, sempre me acompanhou e isso toma uma proporção monstruosa na hora que a ansiedade resolve dar as caras. Eu uso dele até hoje também, confesso, mas tentar quebrar essas barreiras me ensinou que as pessoas até entendem, mas do jeito delas, e ás vezes isso não é o suficiente pra nós. Então é sempre mais fácil guardar tudo (e compartilhar só na terapia).
Na conversa que o Eduardo teve com a Antonieta, sua esposa, quando se separaram, é nítido esse fato. Ele não foi o melhor marido do mundo pra ela, mas quando perguntou o que tinha dado errado no casamento, ela disse que "ele não se esforçava o bastante." O que foi um choque para o Eduardo, já que para ele, tudo o que fez foi o oposto disso, ou como diz o meme, "Engoliu muita porr4 calado". Ninguém o entenderia e isso não mudaria. Tinha um pouco de orgulho nele também, convenhamos. Ele então teve que conviver com o peso de suas escolhas e arrependimentos. É como diz no livro:
"O diabo desta vida é que entre cem caminhos, temos de escolher apenas um e viver com a nostalgia dos outros noventa e nove."
Talvez ninguém nos entenda realmente, e o caminho seja o que o Eduardo levou no fim do livro (não vou dar spoiler). E a meu ver, tudo passou a fazer sentido quando ele descobriu que talvez o verdadeiro "Encontro Marcado" seja consigo mesmo. "Prefiro me arrepender daquilo que fiz". Ele afirma.
Tem pouco tempo que descobri que esse livro é uma espécie de biografia do próprio Sabino, então isso fez mais sentido para entender como os detalhes foram tão bem construídos e serviram para fisgar mais uma vez essa leitora que vos fala, além de me ajudar a melhorar minha escrita.
Claro que reler na nova edição que recebi da Record teve seu charme. Ela é toda bonita de capa dura, pintura lateral preta, e ainda traz alguns extras, como a carta da Clarice Lispector para o Fernando Sabino contando o que ela achou do livro. Linda demais. Ah, e você também pode ter uma dessas ou até presentear alguém CLICANDO AQUI. (No fim do texto tem uma foto minha com o meu).
E não. O intuito desse texto não foi só para fazer a publi dessa edição. Senti uma vontade absurda de colocar para fora algumas das várias sensações que esse livro me trouxe e contar a vocês o quanto os livros podem fazer uma revolução, tanto no nosso jeito de agir quanto pensar. Esse livro é muito especial pra mim. Tanto que coloquei uma referência á ele no meu primeiro livro também.
O encontro marcado é a mesma história que li há 15 anos, mas definitivamente não é o mesmo livro, já que percebi que não sou mais a mesma pessoa que leu da primeira vez, por mais que a Nayara adolescente ainda faça morada em um cantinho dentro de mim. Talvez daqui há uns anos eu o releia outra vez e tenha outras perspectivas. Isso faz parte da beleza e da mágica dos livros: serem uma espécie de termômetros do nosso amadurecimento e evolução (ou não).
Encerrando (ufa), sei que os causadores de mudanças significativas em nós são individuais, mas posso apostar que existe um livro por aí que com certeza causará uma revolução na sua vida algum dia.
Dê uma chance para os livros.
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Porque, afinal, como disse uma vez o sábio Ziraldo:
LER JÁ É O PRÊMIO.
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