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Prólogo - ESTAVA ESCRITO NA CANÇÃO

  • Foto do escritor: Salivrando - Nay Coelho
    Salivrando - Nay Coelho
  • 4 de mai.
  • 19 min de leitura

Atualizado: 26 de mai.

 


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Obsidiana, Minas Gerais. 

Bar Sabotagem, 08 de julho de 2005 - 22h.


      Pessoal, cinco minutos! Guilherme avisou, entrando apressado no camarim, acompanhado por um fotógrafo e sem nem ao menos bater na porta. Ele tinha autoridade para isso, afinal, era o nosso produtor e empresário e passou o dia todo resolvendo as burocracias do evento. Isso era nítido em seu rosto cansado e cheio de olheiras.

A minha memória não é das melhores, admito, mas desde a entrada repentina dele pela porta até o que aconteceu no fim trágico daquela noite, lembro perfeitamente de cada detalhe.

Nosso camarim estava iluminado por luzes azuis, meio ofuscadas por uma fumaça adocicada e familiar. Uma mistura perfeita de cigarro, bebida e gente feliz. A maioria das pessoas estava de pé, apesar de ter sofás de couro e pufes espalhados pelo cômodo. Canções de acústicos da MTV saíam das caixas de som para tentar nos fazer relaxar. A música flutuava pelo espaço e, somada às conversas altas e descontraídas, criava um clima gostoso e um tanto devasso.

O camarim estava mais cheio que o normal. Amigos, família, patrocinadores, fãs vencedores de promoções de rádio, groupies[1] e rostos desconhecidos lotavam o espaço. Esparramado no sofá, eu tentava manter a calma. Já estava acostumado com essa movimentação. Normalmente antes dos shows, afugentava o nervosismo com doses homeopáticas de álcool, outras ilegalidades, ou até mesmo me distraindo com as garotas que circulavam pelo camarim. Mas nada parecia funcionar dessa vez.

Perdi a conta de quantos sorrisos forçados dei para as câmeras descartáveis, quantos CDs autografei e quantos “boa sorte”, “eu amo vocês” e “arrebenta” ouvi desde que chegamos. O ônibus já tinha encontrado dificuldade para nos deixar ali, com tanta gente nas ruas por nossa causa, o que me deixou apreensivo antes da hora. Todo aquele carinho era combustível para os dias difíceis, mas também era exaustivo.

Guilherme mal entrou e, para o meu alívio, pediu para a galera começar a sair. Pelo que me lembro do cronograma passado por ele mais cedo, na passagem de som, a equipe de televisão de nossa querida cidade, Obsidiana, chegaria para nos entrevistar mais ou menos uma hora antes do show, previsto para às onze da noite. Acho que por isso ele estava impaciente, olhando para o relógio e gesticulando para as pessoas se mandarem.

Não fiquei surpreso quando alguns fãs se recusaram a sair. Eles queriam esperar para conhecer a Valentine, nossa guitarrista e, bem… estrela. Só que mais uma vez ela estava atrasada. Houve um pequeno tumulto, mas os seguranças entraram e tiraram todos com um pouco de custo, restando o Lorde, o Théo, o Gui, o nosso fotógrafo e alguns roadies[2], que eram também nossos brothers e estavam bebendo com a gente, e eu.

Lembrar que estava quase na hora me deixou um pouco enjoado. Virei a vodca com energético que estava em meu copo e afastei o pensamento.

Eu vou ficar de cabelos brancos com esse tanto de convidados de última hora, fora essa equipe de segurança incompetente. Logo hoje!  Guilherme falou alto, tirou um lenço do bolso da calça, secou o suor da testa e fez uma careta.

 Relaxa, Gui! Pelo jeito ainda vamos atrasar um pouco! O Théo disse. 

É, pega uma cerveja aí!  Apontei para o frigobar mais próximo dele.

Lorde e Théo vieram se jogar do meu lado no sofá, então o Gui cedeu, afrouxou a gravata e abaixou para pegar uma cerveja.

O pessoal da TV já está vindo falar com vocês daqui a pouco! O lugar está lo-ta-do! Tem pessoas lá na rua se matando por um ingresso e…  nosso produtor falava empolgado, quando se deteve, endireitou o corpo e pareceu ter se dado conta de algo.  Espera aí! Onde está a Valentine?

Ainda não chegou, Gui  Lorde respondeu apreensivo.

Ele era o baterista da banda e costumava ser o mais centrado de todos nós, mas logo de cara percebi que não estava tão calmo, porque passou a mão pela barba recém-aparada, descruzou as pernas e as balançou nervosamente contra o chão.

Os atrasos da Valen antes dos shows estavam mais frequentes nos últimos meses, por isso, naquele mesmo dia na passagem de som, a única regra que todos concordamos sem brigar foi a de chegar na hora. Os protocolos para o show da gravação do nosso DVD estavam muito rigorosos porque seria transmitido ao vivo tanto pela emissora de televisão local quanto por um canal de TV a cabo simultaneamente. Os holofotes do dia estavam todos voltados para a nossa banda. Isso era incrivelmente assustador. Não podíamos errar.

— Cara, temos que ter um plano B. Vai que a Valen resolve não aparecer um dia desses? Já tá pegando mal pra gente — sugeriu Théo, o nosso baixista.

Antes de alfinetar mais ele se levantou do sofá a pedido do fotógrafo e foi para o canto do camarim, onde havia um enorme banner com a logo da Persuasão, para tirar as fotos oficiais pré-show. Ainda bem que fiz as minhas assim que cheguei. Théo ajeitou sua camisa branca larga, tirou o boné e passou a mão por seus cabelos ruivos antes de sorrir para a foto. Queria estar despreocupado assim como ele.

— Já cansei de falar para ela e para vocês que tem a hora de aproveitar e hora de ser profissional, porra! Vocês pelo menos me escutam. — O rosto do Gui ficou vermelho enquanto ele abria o flip do celular e discava, impaciente. — Vou tentar falar com ela. Mais essa agora!

Os roadies cochichavam em um canto e eu preferi me abster, assim como o Lorde. A Valen era assim, ou melhor, estava assim ultimamente, o que deixava o Gui irritado.

Eu entendia todo o estresse dele. Afinal, o que estava em jogo não era mais um show. Pensar nisso ainda era surreal e utópico: a banda que eu era vocalista, a Persuasão, iria mesmo gravar um DVD no lugar onde toda a nossa história começou e ainda por cima com recorde de público. Um número gigante de fãs veio de todos os lugares do Brasil só para nos ver. Produtores do festival mais famoso do país, o Rock in Rio, estavam presentes para decidir se nos colocavam no line-up[3] da próxima edição, que se não me engano seria em Lisboa. Isso faria a nossa banda ser conhecida no mundo inteiro. Então era a nossa chance de ouro de realizar mais um sonho.

Além disso, se tudo desse certo, o próximo passo seria gravar o nosso próprio acústico da MTV. Uma grande responsabilidade que não é para qualquer um. Éramos os queridinhos do momento. Algumas revistas até se referiam a nós como “a voz de uma geração”. Passamos por altos e baixos e nunca imaginei o quanto nossa vida ia dar essa guinada vivendo de música.

— A Valen deve estar fugindo dos paparazzi, Gui. Teclamos pelo MSN[4] no fim da tarde e ela disse que tinha vários esperando por ela na porta do prédio dela, por isso foi com a Verônica para um hotel, mas não me disse qual. Ela já deve estar chegando — explicou Lorde, enquanto era sua vez de fazer poses para o fotógrafo. Ele tentou transmitir otimismo em suas palavras, mas era nítido que nem ele mesmo acreditava nelas.

— Ela deve estar com algum cara por aí. Na passagem de som, estava de papinho com aquele roadie novo. Acho que foi embora com ele — Théo sugeriu sarcástico, observando o Guilherme ligar várias vezes e ninguém atender.

Esse comentário me incomodou um pouco. Quis eu mesmo ligar para a Valen, mas não fazia ideia de onde meu celular estava.

— Ela foi embora de carro, com a Verônica e o segurança particular dela, Ruivo. Você sabe disso — Lorde explicou, esfregando os olhos, cansado.

Théo deu de ombros e foi beber algo no fundo do camarim.

De repente, como se escutasse os nossos pensamentos, a porta do camarim se abriu e a mulher mais bonita que já vi entrou e foi logo dizendo com uma voz entediada:

— O que tá pegando, seus merdinhas? Vocês estão com umas caras péssimas.

E assim a nossa querida guitarrista, Valentine Rubí, entrou no camarim com a sua assistente pessoal e assessora, Verônica. O barulho que vinha de fora, antes de fecharem a porta, era bem alto.

Ela tirou sua grossa jaqueta preta, jogou na mesma cadeira onde meu moletom dos Ramones estava e foi direto para o frigobar. O alívio tomou conta de todos imediatamente, principalmente de mim. Por mais que eu convivesse com ela durante esses três anos de banda, nunca me acostumei com a cena hipnótica que ela me causava quando chegava em algum lugar.

Com um cigarro quase pela metade na mão, ela se abaixou desajeitadamente, procurando algo para beber, agindo como se nada estivesse acontecendo. Pegou duas cervejas e fechou a porta do frigobar dando um chute de leve. Entregou uma lata para a Verônica e largou-se no sofá, onde Lorde e eu estávamos sentados agora. Ela deu um beijo no meu rosto e no dele e cumprimentou os restantes em voz alta.

Lembro que reparei bem na Valen. A presença dela preenchia o lugar de um jeito inexplicável. Eu não era um cara ligado à moda, mas guardei todos os detalhes dela como uma fotografia. Ela usava uma saia justa de couro preta e uma regata cavada branca com a logo da nossa banda. Dava para ver o sutiã de renda preta que ela usava por baixo. Isso, bem… isso ficou na minha cabeça por mais tempo.

Seu cabelo vermelho estava preso em um coque, deixando algumas das pontas loiras caindo por cima dos ombros, bem perto da pedra escura que ela usava em volta do pescoço. Seus lábios estavam com um batom cor de vinho e apesar de ser tarde da noite, estava usando um óculos de sol Ray-Ban preto. 

Meu óculos, que ela pegou emprestado e nunca devolveu.

No pé, a sua marca registrada: as botas vermelhas, que não estavam combinando tanto com o cadarço branco que ela usava, mas, ainda assim, era o famoso coturno da Valen. Ela não podia deixar de usá-lo em um dia como aquele.

A conversa no camarim abrandou, até que Verônica entrou em uma discussão ferrenha com o Gui, tentando justificar o atraso. Nós meio que observamos sem dizer nada, muito menos a Valen, que conversava amenidades com o Lorde.    

— Onde você estava, Valentine? — O Gui quis saber, ignorando as explicações da assessora, que simplesmente se despediu de nós e saiu do camarim, suspirando e pisando forte.

Agora o rosto dele voltou a cor normal, mas ainda assim disse:

  — Esqueceu do combinado sobre os atrasos?       

— Para variar — Théo murmurou irônico, cruzando os braços, também esperando por uma resposta. Ele era menos sutil do que nós.

A Valen curvou o corpo para frente e fuzilou o Ruivo com o olhar. Ela tentava não perder a paciência com o Théo, por mais que ele se mostrasse disposto a tentar irritá-la toda vez.

— Achei que você viria no ônibus da banda com os meninos, porra. Por que não me atendeu? — Gui continuou querendo saber, com um cigarro preso na boca. Não olhava diretamente para ela porque procurava o isqueiro nos bolsos da calça.

Ela fingiu não escutar, enquanto olhava para as próprias unhas. Parecia preocupada com outra coisa. Sacudiu a cabeça e respondeu, após tomar um longo gole de sua cerveja:

— Perdi o celular ontem, quando saí de uma festa lá no centro. Além do mais, o dia de hoje foi uma loucura! Fotos, entrevistas e o trânsito caótico. Não deu tempo de ir ao ponto de encontro. Até tentei avisar o Lorde, mas a internet do hotel estava péssima... — ela explicou me encarando, como se eu tivesse feito a pergunta, então riu.

Não resisti e sorri de volta. Algo nela estava diferente, não sei explicar o que. O Guilherme nem estava mais escutando, já estava dando ordens para os roadies e gesticulando com o cigarro na mão.

Ela também disse que foi até o outro camarim para cumprimentar as pessoas e a família dela estava lá por engano, por isso a demora. Isso porque havia dois camarins dentro do bar Sabotagem, o nosso e um só para a nossa equipe. Foi uma das nossas exigências, já que eles estavam ralando tanto quanto nós para que o evento acontecesse e mereciam um canto para eles também. Mesmo assim, estavam transitando nos dois.

— Valen, você parece preocupada. Sabe que não precisa fazer nada sozinha! — Lorde comentou, pegando o cigarro da mão dela, dando uma tragada e o devolvendo. Ele sabia ler bem as expressões dela.

— Já te falei o quanto você é um amor? — ela perguntou, deitando no ombro dele.

— Hoje ainda não, mas você está perdoada — Lorde respondeu sorrindo, deu um beijo carinhoso em sua testa e se levantou do sofá para pegar uma garrafa de água.

       — Chega de falar sobre mim, já estou aqui mesmo, não é? Quero dizer umas palavras para vocês. — Valentine pegou sua cerveja e tirou os óculos, colocando-os na cabeça, levantou-se e eu a acompanhei, ficando de pé também. — E a propósito, você está bonito, Ric — ela cochichou no meu ouvido e piscou o olho.

Não resisti e dei um beijo no rosto dela. Ela riu e limpou o rosto de brincadeira, mas tocou meu braço me encarando.

— Ih, já está chapada? Com meia cerveja? — Théo debochou alto. A Valen fechou a cara imediatamente.

— Vai se foder, Ruivo! — Ela respondeu irritada, jogando sua lata de cerveja já quase vazia na direção dele.

— Calma, Valen, estou zoando, você sabe! — Théo se defendeu, desviando por pouco da lata. — Não está mais aqui quem falou!

  Ignorei o Théo, que estava totalmente sem graça e voltei meu olhar para a Valen. Endireitei o corpo ao lado dela, esperando-a começar a falar. Ela respirou fundo, raspou a garganta e continuou, agora mais calma e emotiva:

— Anos atrás, eu convenci vocês a aceitarem essa loucura de entrar em uma banda, sem saber se as coisas dariam certo. Fizemos aquele cover[5] aqui, nesse bar, e senti que nós íamos ganhar o mundo. Não sei como, mas senti! Hoje quando acordei, pensei o quanto tem valido a pena dividir essa loucura com vocês, até mesmo com o chato do Théo!

Todos rimos. O Lorde se aproximou da Valen e colocou o braço em torno de seus ombros de maneira fraternal. Eu e o Ruivo nos aproximamos mais e ela continuou seu discurso:

— Hoje é a gravação do nosso primeiro DVD, depois de uma segunda turnê alucinada. Um sonho antigo que vai ser o divisor de águas da nossa carreira. Me sinto privilegiada de estar aqui onde tudo começou, com vocês, seus merdinhas, e tudo que temos direito! Sei que não tenho sido a melhor amiga nesses últimos meses, mas eu só queria dizer que eu amo vocês demais e não importa o que acontecer, isso nunca vai mudar!

Na mesma hora, nós quatro nos juntamos em um abraço coletivo e o Gui, que falava ao telefone, desligou e puxou aplausos e assobios com os roadies. Alguém apareceu com um champanhe e estourou perto de nós. O nosso fotógrafo aproveitou e tirou várias fotos, eternizando aquele momento foda.

— Tá bom, gente, chega! Vai borrar minha maquiagem! — A Valen riu.

Ela se soltou do abraço e começou a secar as lágrimas de seus lindos olhos âmbar, que estavam com uma maquiagem preta carregada. Cheguei próximo dela, dei um beijo em sua testa e ela me retribuiu com um sorriso triste, mas que poderia ter sido apenas impressão minha.

— Cara, parece que foi ontem que estávamos na garagem do Lorde ensaiando! — comentou Théo de maneira sonhadora, olhando para cima. Parece que quem estava chapado com meia cerveja era ele.

— Verdade, nosso momento chegou, meus amigos! Finalmente! — a Valen disse empolgada e foi posar para o fotógrafo.

Lorde começou a gravar vídeos amadores e tirar fotos em sua Cyber-shot [6], enquanto eu ficava ao lado dele falando besteiras. De repente, veio outra batida forte na porta, acompanhada de um grito dizendo "reportagem", que nos fez parar o que estávamos fazendo.

— Hora da entrevista, meninos! — Guilherme avisou, abrindo a porta.

Duas mulheres e um cara uniformizado estavam carregando equipamentos de filmagem. A mais alta entrou primeiro, seguida dos outros dois.

— Boa noite, Persuasão, vamos gravar uma exclusiva ao vivo aqui com vocês, ok? Sou a Camila e esses são a Clarice e o Anthony!

A mulher apresentada como Clarice tirava os equipamentos da maleta que carregava olhando para a Valen a cada dois segundos, enquanto o outro ajustava um tripé, a câmera e a luz. Camila deu instruções burocráticas, nos posicionou e entrou em nosso meio enquanto aguardava o sinal do cinegrafista de que tudo estava pronto para entrar no ar. Clarice ajustou captadores de som nas nossas roupas e ficou excepcionalmente nervosa quando se aproximou da Valen, que estava do meu lado direito. Ela falou:

— Oi, eu sou muito sua fã, sério! Amo seu trabalho! Da banda também.

— E eu amo o seu! — Valen respondeu carinhosamente, colocando a mão no ombro da Clarice, que aproveitou a brecha e pediu para tirar uma rápida foto com ela e com a banda toda, já que tinha na mão uma pequena câmera digital.

— Baixei todas as músicas de vocês no meu mp3[7]— ela comentou animada, mas foi logo repreendida por Camila.

— Detesto trazer estagiárias no backstage[8] por isso! — Camila disse entre os dentes para Clarice, que a encarou firmemente, tirou a foto e se posicionou, ainda empolgada, atrás do cinegrafista. Mais uma fã maluquinha.

Apesar de nós já estarmos acostumados a dar entrevistas, aquela em especial parece ter deixado todos um pouco nervosos, afinal, seria o show mais esperado da nossa carreira e deviam ter milhares de pessoas nos vendo ao vivo. Respirei fundo e tentei não focar nisso.

— Atenção, todos nos seus lugares! Entramos em 3, 2 ... — contou Antony, apontando para Camila no fim da contagem.

— Boa noite, Obsidiana! Estamos aqui hoje para uma noite memorável com eles, os queridinhos do momento, a banda de rock Persuasão, gravando seu primeiro DVD ao vivo! — Ela fez uma pausa enquanto comemorávamos diante da câmera. — Vou falar aqui um pouquinho com o coração da banda! — Virando-se para direita, olhou para Valen e continuou: — Então, Valentine, como estão os ânimos por voltarem ao Sabotagem, onde fizeram o primeiro show de vocês, para este que está batendo recorde de público e parou completamente a cidade?

— Ah, Camila, é uma sensação incrível, cara. Tocar em casa tem um gostinho especial. Parece que eu vou dar um piripaque a qualquer minuto! — A Valen disse, fazendo uma careta brincalhona.

— E vocês, meninos, como está a expectativa para o show de hoje? — Camila estendeu o microfone para mim.

— Faço minhas as palavras da Valen! Velho, está uma loucura! É a realização de um sonho desde o primeiro ensaio — falei gesticulando muito. — Vai ser legendário!

Virando-se para Lorde e Théo, que estavam do lado esquerdo dela, Camila continuou:

— Foi difícil escolher as músicas do show de hoje?

— Um pouco! — Lorde respondeu com aquele sorrisão simpático. — Os fãs ajudaram votando no fórum da nossa comunidade do Orkut. Escolhemos algumas do primeiro álbum, o Amor & Ócio. Vamos tocar as canções do Obsessiva na íntegra e…

— Fora as surpresas que preparamos para vocês! — Valen interrompeu Lorde, puxando o microfone para si, meio desajeitada, quase caindo em cima da Camila.

Todos nós rimos, mesmo sem saber de qual surpresa específica ela estava falando. Imaginei que fosse a música nova, a “Saturno é Logo Ali”.

Camila continuou a entrevista de forma profissional, agradecendo aos patrocinadores do evento e pedindo que um de nós encerrasse a transmissão. Escolhemos o Ruivo.

— Somos gratos demais por tudo que estamos conquistando, aos nossos fãs, à nossa cidade, à nossa família, aos nossos amigos, enfim, a todos! Não teríamos conseguido chegar até aqui sem vocês! Nos vemos no palco daqui a pouco — o Théo disse de forma simpática para as câmeras.

— Então, galera, essa foi a Persuasão, que daqui a pouco vai entrar no palco e quebrar tudo! Eu já vou para o meu lugarzinho, e fiquem ligados, porque esta noite será inesquecível! Até já! Bom show para vocês! — Camila encerrou e o cinegrafista fez sinal afirmando que já estavam fora do ar.

A equipe agradeceu a entrevista, juntou seus equipamentos e saiu. Guilherme olhou para o relógio e avisou:

— Meninos, tá quase na hora. Vocês terão que passar pelo estacionamento. Os seguranças vão encaminhar vocês. Nos vemos atrás do palco.

Com a mega produção do evento e a estimativa de público, seria impossível fazer a gravação dentro do Sabotagem, então foi montada uma estrutura animal na área gramada, que também pertencia ao bar, bem do lado.

O Gui saiu com a equipe, deixando apenas a banda no camarim. Era um hábito, antes de cada show, ficarmos sozinhos por um momento para nos concentrar. Tinha sido dada a largada.

— Minha adrenalina tá a mil, não consigo esperar! Vou ver se deixaram minha bateria no jeito! — Avisou Lorde, indo até a porta fechada a poucos segundos.

— Ei Lorde, espera aí, velho! Cheguem mais, galera! — pedi para ele, o Théo e a Valen antes de se dispersarem.

— O que foi? — perguntou Théo com a boca cheia. Tinha resolvido comer algo assim que a equipe de reportagem saiu.

— Galera, vamos dar o nosso melhor e tocar como se fosse o último show das nossas vidas. Esperamos muito por isso! — Falei, olhando para cada um. Sendo o frontman[9], precisava dizer algo nesse momento histórico para a banda.

— No três, então? — perguntou Lorde, agora mais calmo. Estendeu sua mão direita no centro do grupo e assentimos com a cabeça.

— Um, dois, três, PERSUASÃO! — gritamos os quatro em uníssono, unindo as mãos ao centro e jogando para cima.

Lembro que nos abraçamos outra vez. Foi uma sensação boa que me lembrou do quanto valia a pena estar vivendo isso com eles e não do clima tenso que se tornou parte da rotina nos últimos meses. Nem tudo são flores nos bastidores de uma banda, mas por eles eu mato e morro. Foram muitos ensaios, reuniões e entrevistas para que aquele momento enfim acontecesse.

O segurança abriu a porta e avisou que em dez minutos nós precisávamos sair.

— Queria contar algo para vocês, mas… ah, quer saber? Melhor ser depois do show — a Valen comentou de forma descontraída, e nós três demos de ombros.

Um erro brutal, admito.

Coloquei uma mexa de seu cabelo, agora solto, atrás da orelha dela, e vi que suas bochechas ficaram vermelhas.

Lorde e Théo se olharam, riram e saíram na frente, nos deixando sozinhos. Acho que entenderam a minha deixa. Eles já sabiam que eu queria conversar a sós com ela, mesmo que o horário naquela noite estivesse apertado.             

A Valen acendeu um cigarro, sentou no sofá e estendeu a mão, me oferecendo. Aceitei e sentei ao lado dela. Ficamos em silêncio, quebrado apenas pela música que ainda tocava baixo no camarim. Ela cantava olhando para o teto, pensativa. Eu queria dizer tantas coisas e não sabia por onde começar. O tempo estava correndo. Nos entreolhamos e ela deu aquele sorriso que me desmanchava, então falei o que me veio à mente primeiro:

— Olha, Valen… Eu sonhei tanto com isso quanto você. Não quero ser o cara que, daqui a cinco anos, ninguém mais vai lembrar — desabafei após dar um trago e devolvi o cigarro para ela. — Estamos tentando ir além, sabe? — Eu estava realmente preocupado com ela e queria que ela pudesse confiar mais em mim para se abrir.

— Eu entendo, Ric — suspirou. — Sei que não estou sendo a melhor das companhias ultimamente. Tem tanta coisa acontecendo, mas nós vamos além. Juntos! — Ela deu uma última tragada, apagou o cigarro, jogou a fumaça pra cima, levantou e estendeu as mãos para mim.

Reconheci que tocava “Saturno é Logo Ali” na versão final e acho que essa música estava nos perseguindo. Pensei em dizer algo, mas ela sorriu e falou antes de mim:

— Relaxa, Ric! Você costumava ser o cara mais despreocupado que eu conhecia, sabe? Olha que eu conheço bem o seu coração agora. Ou você já esqueceu disso?

— Como você ousa usar isso contra mim, Valentine Rubí? Estou profundamente ofendido — acusei ironicamente, enquanto levantava e segurava as mãos dela. Senti até eletricidade quando a toquei.

Ela se referia a nossa última gravação juntos, justamente a dessa música. Foi intensa.   

— Você me conhece, Ric Lorenzo, ousar é meu verbo favorito! — ela respondeu com um sorriso malicioso, aproximando-se mais de mim.

Será que eu estava entendendo direito? Ela estava mesmo rompendo a barreira entre nós, logo com essa música de fundo? Era até poético. Segurei suas mãos e as coloquei na minha cintura. Nossa intimidade como parceiros de banda e amigos era enorme, mas dessa vez tinha algo diferente desde o momento que ela entrou no camarim. Me deixei levar por ela, balançando de um lado para o outro. De toda forma, era um jeito de aliviar a tensão antes do show.

— Só vai com calma, tudo bem, Valen? — Parei de mexer e a encarei. — Estamos preocupados com você, nossa estrela. A Persuasão ainda tem que ganhar o mundo, lembra?

— O mundo já é nosso, baby! — Valen disse e piscou um olho, em seguida deitou a cabeça no meu peito.

Eu não estava acreditando que aquilo enfim estava acontecendo. Talvez fosse a emoção da noite ou sei lá. Que se dane! Valentine Rubí parecia estar finalmente querendo o mesmo que eu. Passei as últimas semanas sem saber se ela sentia o mesmo ou se era apenas algo da minha cabeça confusa, mas agora ela estava dando todos os sinais de que algo realmente mudara entre nós depois que gravamos aquela canção. Eu não estava maluco.

Retribuí puxando-a pela cintura para mais perto de mim. Sentir seu perfume e a sensação do corpo dela no meu era melhor do que eu havia imaginado. Encaixava perfeitamente. Queria gravar todos os segundos daquele momento. Desde que a conheci, tive uma vontade imensa de beijá-la e conhecer cada canto de seu corpo, mas nunca ultrapassei nenhum limite. Até aquela noite.

A química entre nós era inegável dentro e fora dos palcos, mas eu sabia que a Valen tinha os receios dela e tentava se esquivar o máximo que conseguia. E ainda havia uma questão literalmente burocrática, bem maior do que nós.

— Sabe o que estou morrendo de vontade de fazer há muito tempo? — sussurrei com toda a coragem do mundo, colocando a mão na nuca dela, que me encarou, mordeu o lábio inferior e fechou os olhos, enquanto eu me aproximava cada vez mais para finalmente descobrir como seria beijá-la.

Então, de repente, a luz do camarim fez um zunido e piscou duas vezes. Olhamos para a lâmpada assustados, mas não me afastei dela, pelo contrário, a puxei mais para perto de mim. Nos encaramos de novo e me curvei em direção à sua boca outra vez.

— Espera, Ric! — ela pediu com a voz rouca, a poucos centímetros do meu rosto. A expressão dela era de quem havia se lembrado de algo. Estalei a língua e a soltei.

— Fiz algo errado? Já sei. É por causa daquele maldito contrato. — Esfreguei os olhos, irritado. — Me diz que eu não estou ficando maluco, Valen, que você também sentiu algo nas últimas semanas. Por favor?

Ela se afastou rápido de mim, porém se deteve no batente da porta e relaxou os ombros. Virou-se de frente pra mim e deu um sorriso que nunca vou esquecer.              

— Você não fez nada de errado. Que se dane esse contrato! Só preciso fazer uma coisa antes. — Ela cerrou os punhos. — A gente continua de onde parou, prometo! Vou pegar isso emprestado, ok? Está frio lá fora. — Avisou, pegando meu moletom dos Ramones na cadeira. Tirando um celular de dentro do sutiã, olhou para o visor e saiu apressada do camarim.

— Valen, onde você vai? — tentei argumentar, mas ela já havia desaparecido pela porta.

Ao contrário do que prometeu, não voltou para terminar o beijo.

Nem para o show.


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Da esquerda para a direita: Théo, Lorde, Valentine e Ric.
Da esquerda para a direita: Théo, Lorde, Valentine e Ric.


Notas de rodapé

[1]  Termo usado para caracterizar jovens mulheres que admiram um cantor (a) seguindo-o (a) em suas viagens, em busca de envolvimento emocional ou sexual.

[2] Técnico de apoio encarregado de lidar com as produções do show, especialista em determinado instrumento. Substitui os músicos nas montagens e desmontagens do show.

[3] Termo em inglês que se refere a lista completa de artistas que se apresentam em um show ou festival. 

[4] Abreviatura de Messenger, um programa de mensagens instantâneas, popular nos anos 2000.

[5] Interpretação de uma música por um artista ou grupo que não é o autor original.

[6] Câmera digital da Sony, popular nos anos 2000.

[7] Aparelho eletrônico que permite armazenar áudio.

[8] Bastidores.

[9] Vocalista principal.


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SALIVRANDO

 criado por    Nayara Coelho

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